Sabe
aquelas cenas de pancadaria generalizada que rolam enquanto toca uma música
clássica no fundo? Essa era a situação, algo parecido com a Abertura 1812 de Tchaikovsky. Digno de filme, onde socos são
trocados, balas voam por todo o lugar e aquela música, é o oposto do momento.
Estava acontecendo ali, estava parecendo um filme, era a violência na sua forma
mais bruta.
Começou com a intimação sem direito a resposta. Me colocaram
na viatura e iam trafegando até a delegacia. Os cinco quarteirões mais
demorados da minha vida. Deu tempo de repensar o porque de ter agredido
Jordana, como as coisas seriam dali pra frente e em como o meu comportamento
sempre esteve condicionado para esse tipo de fim. Não, não me arrependo em
nada, acho que o ser humano de vez em quando precisa desse tipo de catarse,
sabe? Ao menos que seja a possibilidade de jogar tudo pra cima e limpar a alma,
as impurezas e sentimentos ruins. Existem pessoas que dizem que precisamos ser
ruins às vezes para ver o quão bom somos. Eu acredito nisso. Inclusive,
acredito que sou uma prova viva de tal teoria. Não é necessariamente ter que
ser, ou ser por natureza, a questão principal é que a realidade nos molda e
joga contra a grade. É a nossa forma de revide. Liberar os demônios é
necessário, eventualmente porque vivemos em um cotidiano fodido. Ou você bate,
ou você apanha.
Entre todos esses dilemas, só me passava pela cabeça de que
eu não precisava daquilo tudo. Eu não preciso respeitar tais leis, eu não vivo
por elas, muito menos dentro delas. Uma coisa que eu nunca consegui, foi aguentar
o fato de algo ou alguém me controlar. Isso me tirava do sério. Eu não sei
aceitar as armadilhas do acaso, sempre fui assim: solitário e renegado, sem
leis pra cumprir, sem amarras para me prender, nunca fui refém de nada, nem dos
meus sentimentos, nem das minhas palavras. Naquele caso, eu era dos meus atos.
Acho que fracassei em tentar viver minha vida toda em um piloto automático,
muito mais em tentar deixar tais marcas do passado escondidas. Essas cicatrizes
eram bem visíveis, eu era um anti-herói, e nada melhor do que uma surra nos
porcos para provar a minha verdadeira natureza.
O dia não tinha começado bem e nem iria terminar assim. Não teria
como, afinal, ao final da quinta quadra eu saquei a arma, acertando o condutor.
Sim, eu sei, foi uma ideia idiota. O carro perdeu o controle, sem falar que o
outro tira se virou e veio me golpear. Burro, poderia ter usado sua arma,
embora em seguida ele tenha se lembrado dela. O vidro que nos separava já tinha
se tornado em estilhaços que estavam no chão do veículo. Trocamos socos, num
combate de igual para igual. Eu podia ver o seu medo, o seu despreparo.
Provavelmente nunca tinha presenciado uma experiência de tal risco, e eu usaria
essa fraqueza a meu favor. Eu faria dela a minha arma. Num impulso, ele
simplesmente pulou para o banco de trás como se fosse um leão em busca da sua
refeição. Naquele momento éramos animais dentro de um carro desgovernado.
Poderíamos estar sendo vistos por outras pessoas, a viatura poderia estar
caindo em um barranco ou indo para a direção oposta, cruzando a linha que
separa as faixas, mas nada mais importava. Era o seu medo contra a minha ira,
os seus 1,89 cm contra os meus 1,85, a sua inexperiência contra o meu instinto
assassino. Entre golpes e socos, pontapés e cotovelos, estávamos ali, armados.
Esperando o golpe final. Ele sabia que era uma luta desigual, e quando percebeu
isso resolveu apelar para o seu trunfo. Não houve tempo para pensar. Aqueles
segundos que nos separavam. Foi suficiente apenas para trocarmos um olhar que
exibia a nossa vontade de viver, a luta pela sobrevivência, pela supremacia. Eu
nasci para matar, eu fui a esse mundo com esse objetivo, aquilo seria mais do
que comum, ao contrário do policial, aquele paladino da justiça que ia a
contramão do que sou. Eu iria mata-lo, eu acabaria com sua vida, honrando o que
meu pai sempre disse. A sangue-frio. Filhos e esposa chorariam, suas
expectativas e sonhos morreriam com ele, sua tão sonhada aposentadoria em uma
praia nativa ficaria para outra vida. Sacamos as armas ao mesmo tempo como em
um velho faroeste onde os cowboys se enfrentam, em que os momentos de tensão
contrastam com o vento calmo e o chão árido, com areia. Seu tiro acertou meu
estômago, o meu soco o fez desabar, e quando segurei sua cabeça entre minhas
pernas apontei para a sua cabeça. Em cheio. Sangue para todo lado. Estava no
baco, nas minhas roupas, na minha barba, em meu rosto. Joguei o corpo para o
lado. Aquele projétil deveria ter no máximo 1, 2 kgs, mas pesava uma tonelada.
Naquele estado, debilitado, foram precisos minutos até arranjar forças e sair
dali.
O dia de fúria estava longe de terminar.
Atirei o corpo para fora e me sentei no lugar do condutor. Coloquei o cinto e
com uma mão segurava o volante e a outra pressionava o local atingido. Era
preciso chegar em casa, explicar para Mariana o que aconteceu e sair, para o
mais longe possível. Ela deveria estar desenhando, fazia desenho industrial.
Provavelmente me veria e entraria em pânico. Odiava brigas e sangue. Seria
horrível enxergar seu medo e provocar nela aquele alvoroço todo, mas era
necessário. O pior seria ter que partir. Com ou sem ela. Os tiras viriam. Em
maior número. Sedentos, em uma jornada interminável. Era questão de justiça
para eles, e não hesitariam em fazer com as próprias mãos, ou com suas balas.
Cambaleando, arrastando as pernas, juntando todas as forças
para chegar em casa. Aqueles degraus pareciam enormes muralhas a serem
percorridas. Eu iria chegar, pensava. Minha visão turva me contradizia.
Balbuciei algumas palavras, que deviam ser o nome de Mariana. Desmaiei. Não sei
por quanto tempo, mas fui acordado com seus gritos histéricos. Havia perdido
muito sangue, mas mais ainda seria derramado ao entardecer. O momento de
partida havia chegado. Eu seria refém daquele crime, perturbado em meus sonhos
pelos olhos sem vida daquele vigilante, da surra em Jordana, do
descontentamento dos meus pais ao saber que era procurado pela polícia. Penso
na minha namorada, que desgosto se envolver com um assassino, mas ela poderia
partir. Seria apenas eu contra o mundo. Seria, se ela não optasse por estar ao meu lado. Seríamos reféns, dos nossos erros, de nós mesmos.