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Projeto de escritor. To sempre de malas prontas pra lugar nenhum por que até hoje não achei casa alguma dentro de mim. (Pra saber mais, clique ali em Quem eu sou, à direita)

segunda-feira, 27 de maio de 2013

Redenção


Parque Farroupilha, codinome Redenção. O mais tradicional e popular parque dos gaúchos onde diversas culturas ali se encontra assim como as mais variadas pessoas. Da grama tão verde ao vendedor mais antigo de relíquias inesperadas, da água que jorra do chafariz, passando pelo brique. No meio de tudo, você. No meio do parque, encontrei minha redenção. No meio de um domingo, você o enfeitou. Com sua voz suave, olhos verdes como a grama que cerca a Fonte Francesa, olhos tão atentos, olhos e coração tão serenos. Ainda que odeie lugares lotados, odeie enfrentar o trânsito de pessoas que parecem moribundas ao andar em uma marcha fúnebre, dividindo espaço entre as inúmeras tentas que aglomeram aqueles que procuram algo. Ali alguns esperavam achar um presente, outros um motivo para fazer o domingo valer a pena. Eu apenas esperava conseguir um bom tempo para desperdiçar com você. Em meio ao sol porto alegrense, em meio ao céu anil sem nuvens.
Estava eu em uma caminhada, deixando de lado meus sentimentos lúgubres, escanteando qualquer desconfiança, dando lugar a uma nova escrita daquela que parece ser a mais bela história de amor que foi pintada em minha vida. Ao me livrar de tudo isso dei lugar a redenção. A redenção de todos os pecados que antes cometi, a remição dos meus erros e decepções, da tristeza lacônica e as incertezas do futuro. No meio da Redenção, encontrei minha redenção. Encontrei você. Encontrei minha redenção em você. E tudo isso sem ao menos te ver. Tendo sido leve, sorrateira, acampando ao norte de mim, largando suas bagagens em meio a minha confusão diária, deixando no meio do caminho, entre irresoluções, meus pensamentos nefastos, meu dia a dia preto e branco, com detalhes em cinza.
Redenção de todos os amores póstumos. Redenção de um domingo colorido. E eu levo comigo uma certeza em meio a tudo que me trouxestes: não serei o mesmo. Não terei como te apagar, nem mesmo se fosse Joel*, nem mesmo em mil anos ou mil dias. Nem mesmo minha redenção ficará impune, nada passará em branco. Está escrito.  E tudo começou na Redenção.

*Joel é o personagem de Jim Carrey em Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças. Recomendo o filme.

domingo, 26 de maio de 2013

Diálogos


A claridade invadindo as janelas abertas me despertava para mais um dia.
- Bom dia, senhor. – Dizia ele, com seu bom humor costumeiro, embalado por um sorriso calmo. Trazia na bandeja meu desjejum, embora soubesse que quase não como devido ao meu enjoo matutino. Analisei os pratos, colheres, garfos e os alimentos, pães, salgados e leite.
- Temo que irei recusar outra vez, mas obrigado mesmo assim.
- Como quiser senhor, mas se me permites dizer, deverias comer.
Eu sabia que estávamos embarcando em um carro que faz o mesmo trajeto, para nos mesmos pontos e não chegando a lugar algum. Sabia que ele argumentaria sobre a minha saúde e a forma com que tenho tratado ela. Me daria um sermão, mesmo eu sendo um adulto já. Diria coisas que eu já tinha conhecimento, mas preferia que continuassem verdades ocultas. Por trás dessa fortaleza, nessa casa confortável, as paredes brancas brandeavam que eu saísse, nem que fossem 15 minutos. Estavam cansadas de ver meu rosto cada vez mais pobre de expressões, desanimadas em não receber companhia que não fosse a minha.
- Olhe sir, você deveria sair, tomar um ar fresco. Fará um mês em breve que o senhor não sai de casa. E não se esqueça, eu sei que o senhor também não anda tomando banho. O que acontece-
Eu o interrompi. Não precisava ouvir aquilo tudo novamente, mas dessa vez, éramos peças num tabuleiro de xadrez, e eu acabava de errar a jogada que daria a ele a sua vitória. Checkmate.
- Não, ouça você. Eu sei que as coisas acabaram mal, mas você precisa ressurgir. Eu sei muito bem o que acontece com os homens bons. Eles se calam. Isso não é uma atitude muito boa. E eu sei que desde o momento em que olhei em seus olhos e ouvi seu choro ecoar por esses corredores de que o senhor tinha uma boa alma. Se o senhor fosse tão ruim quanto pensa, não passaria os últimos quatro anos como um eremita que se refugia em sua casa, se protegendo do mundo que o decepcionou. Não teria ficado tão triste com a falta de bondade das pessoas que renunciaria do convívio diário com a sociedade. Senhor, o senhor é uma boa pessoa. E daí se o mundo o feriu? Vamos lá, faça como seu pai; se levante! É hora de deixar esses arrependimentos para trás. Não é por que o mundo lhe feriu que você deva abster-se de viver. Viva um pouco. Volte. Ressurja. 

domingo, 19 de maio de 2013

Rascunhos


Estava lendo esses dias o livro de poesias de Fabrício Carpinejar, Caixa de Sapatos, e acabei rascunhando algumas coisas. Não sei se são poemas, poesias, versos ou apenas frases soltas que vagavam pela minha mente.
No domingo que vem trago o capítulo final À Sangue frio. Enquanto isso fique com esses rascunhos amadores.


Sensações

É horrível.
Essa sensação, sabe?
Mundos se partindo, 
ligações se rompendo,
tintas descolorindo,
amor sendo derramado
em forma de sangue.

No meio

É a minha insônia.
Cansado demais para dormir,
inquieto demais para conseguir pensar,
transtornado demais para desistir.
Estamos no meio do nada, no meio do incerto,
do inimaginável, das situações impensadas,
dos momentos improváveis.

Lados

Onde ficara aquele amor que tu me deu?
Qual foi o vento que levou suas palavras? 
Por que ódio e amor são separados por uma linha tão tênue?
Estamos em uma batalha campal,
lutando por nossas almas,
protegendo nossos corações contra outras decepções.
Já abrigamos muitos arrependimentos passados,
já deixamos meio mundo de lado.
De qual lado você está?


Orvalho

Me perdi totalmente ao te encontrar.
Me perdi totalmente por te encontrar.
Só me resta rastejar e descansar nesse orvalho,
esperando pelo crepúsculo surgir 
extenuando minha escuridão.

Crença

Estou no meio de uma guerra química.
Estamos lutando por uma convicção jogada aos quatro ventos.
Estamos lutando por acreditar.
Essa é a nossa fome.

Habitat Natural

Está tudo saindo do meu controle.
Tudo está escapando pelas minhas mãos.
Menos meu vazio.
A gravidade me põe para baixo.
É abaixo do solo o meu habitat natural.
É entre minhas sombras
e dentro delas que eu me perco, e me acho.

domingo, 12 de maio de 2013

À sangue frio IV



O vidro embaçava com a respiração de Mari, era o seu temor à mostra. Não poderia negar que era uma situação desconfortável, mas não chegava a ser medo, apesar da ideia de passar o resto da minha vida na cadeia não agradasse em nada. Andávamos em velocidade baixa, com os olhos bem abertos e atentos como os de um gavião, procurando qualquer vestígio de policiais, que naquele momento deviam estar adentrando nosso pequeno apartamento, revistando gavetas, procurando provas, detalhes que podiam dizer para onde iríamos. Trocamos poucas palavras, aquele pavor permanecia no ar como uma nuvem densa e cinzenta. Procurávamos ser discretos, mesmo assim, sabia que em algum momento teria que parar – eu ainda sangrava muito -, o problema seria onde ficaríamos. Nenhum lugar era seguro. Provavelmente teríamos que abastecer, ou seja, era a hora de aproveitar para pegar alguns mantimentos. Tudo isso teria que ser rápido, estaríamos nas TV’s, nas estações de rádio e em tudo mais que possa se imaginar. Além do mais, ninguém deixaria de notar um cara branco de 1,85 sangrando.
Desbravar aquelas ruas desertas e inóspitas era um desafio. Qualquer movimento me deixava tenso. Meus olhos fixos no semáforo que teimava em não acender a luz verde. O vermelho predominou por instantes que pareciam décadas. O mesmo vermelho do sangue derramado que originou tudo isso. O mesmo vermelho que saía do buraco em que a bala entrou. O vermelho de morte prevalecia. A respiração rápida de Mariana, o suor escorrendo por minha testa, o silêncio mortal, como se nossas palavras fossem armas. Tudo o que eu queria era desaparecer dali, mas a sinaleira teimava em demorar. Foda-se, arranquei cantando pneu, lembrando a época em que pegava o carro do meu pai escondido. Involuntariamente fui aumentando a velocidade, quando me dei conta, tinha passado dos 100 kms/h. Merda, era provável que  tivesse passado por algum pardal nesse período. Mariana deveria ter me avisado, mas ela não estava com o pensamento ali. Não poderia culpa-la, quem mais tomaria a tola decisão de estar ao meu lado a não ser ela? Em seus planos, provavelmente as cordilheiras da Patagônia eram o lugar perfeito para se refugiar. Eu concordava com ela, o problema seria chegar até lá. A neve tocando nossos rostos, seus cabelos morenos, uma cabana no meio da natureza e nada mais. Fiz um afago em sua perna trêmula, ela respondeu com um sorriso tímido. Em seu olho havia lágrimas, esperando o mínimo movimento para brotar. O rímel borrado, a orelha sem brincos e o cabelo despenteado. Sorri de volta, era o mínimo que podia fazer. Ela nunca pensou que se envolveria com um babaca assim. Provavelmente seu pensamento era criar uma família e cuidar do lar, eu estava providenciando emoções que ela nunca esboçou pensar. Um tiroteio, agressões, sangue, deixaríamos tudo isso para trás.
O carro aguentaria a viagem, ainda tínhamos combustível o bastante. A patrulha chegaria em alguns minutos, os policiais tomaria a cidade e suas saídas em pouco tempo. Eu não queria dizer nada para Mari, mas morreríamos ali mesmo. Morreríamos sem nem chegar perto da linha de chegada. Gostaria de dizer algumas coisas para ela, garanto que ela também gostaria de fazer o mesmo. Queria poder dizer que desde a primeira vez que a encontrei, nunca mais reparei em outra pessoa. Eu devia ser a maior decepção de sua vida, mas ela não sabe o quão duro eu dei para chegar a esse nível, o quanto eu batalhei para me tornar um babaca de primeira, um mau agouro na vida dos outros, símbolo de azar e fracasso por onde eu passo, a ovelha negra da minha família e de qualquer grupo que eu fiz parte. Ela era paciente e eu amava isso nela. Nunca mais iria vê-la fazer coisas que me encantam, como o simples fato dela ajeitar a mesa para as refeições, ou a forma com que ela ajeitava o cabelo. Isso me fazia sorrir, e lá estava eu sorrindo em uma situação de desespero descomunal, catatônico. Eu ali olhando para nossas alianças e me relembrando de uma frase do seu escritor favorito. Como era mesmo? “Formalizar o namoro é trocar um medo por outro. Antes tinha o medo de que ele não estivesse apaixonado, agora tem o medo de ser abandonada. A insegurança é eterna, quem tem certeza, não ama mais”. Nisso, ela me olha com cara de espanto, talvez nojo pelo seu sorriso despojado. Essa garota nunca me entendeu.
- Você é louco sabia? – disse ela, em um surto de raiva. – Vamos morrer aqui e tu sorri? Deus, como você é babaca.
- Meu bem – eu tentei argumentar -, você esperava algum final diferente desse?
            Ao acabar a frase pude ver pelo retrovisor as luzes azul e vermelhas preenchendo o fundo. Era o início da tão esperada caçada. Eles não desistiriam, como cães que farejam drogas, como lobos que procuram suas presas na neve, como os leões nos safaris africanos.
Fui acelerando ainda mais. Os meus batimentos cardíacos acompanhavam a subida de velocidade, assim como o choro quase compulsivo de minha namorada. O fundo estava sendo pintado por cores azuis e vermelhas, das luzes de viaturas que chegavam cada vez mais próximos do carro. Nada mais importaria daquele momento em diante. Era uma questão de tempo para ruas serem fechadas, barreiras colocadas e tiros serem disparados. Tudo é uma questão de tempo, tudo passa muito devagar, embora os instantes deslizem vagarosamente como uma Aranha desliza da sua teia, sem pressa alguma para saborear a presa, como os ritos antigos, em seitas onde uns devoram os outros. Seria assim, só que os tempos eram outros, assim como as armas se aperfeiçoaram. A única coisa que nunca mudou foi o fato da humanidade tentar acabar com o seu próximo. Das cavernas, com pedras e paus até os edifícios altos e as bombas atômicas, o instinto humano de entrar em conflito com o seu semelhante. E aqueles homens, eles iriam me cozinhar vivo. Eles fariam de tudo e me perseguiriam até os confins da Terra para me achar.Respirei fundo e troquei de faixa. Estava agora na contra-mão, como um furacão, todos os carros se afastando ou procurando desviar daquele tornado cinza. Era um movimento preciso. Era necessário ir contra tudo aquilo ali, era necessário arriscar. As estatísticas diriam que existiam mais de 90% de chances de bater o carro ou perder o controle da direção. Naquele momento eu não estava mais pensando. Eu estava apenas dirigindo, indo contra a correnteza como um peixe na sua árdua subida até a cabeceira dos rios para reproduzir. Ao contrário dos peixes, eu não estava buscando a vida e sim a morte. Seria uma bela morte ali. Seria como eu via na TV aquelas perseguições entre bandidos e bonzinhos. Quando você chega à fase adulta da vida percebe que não há grande diferença entre um e outro, nem tudo é tão claro e a maioria das coisas é cinza nesse mundo preto e branco. Quando se vira adulto, se percebe tantas coisas que antes a olho nu não eram perceptíveis. Muitas coisas mudam, mas nem tudo fica irreconhecível. Diante de nós apenas algo permanece imutável: o medo da morte. Algo que estava ignorando até aquele momento quando fui despertado de meu transe pelos gritos histéricos de Mariana. Eu não conseguia entender bem quais eram os xingamentos e palavras ditas. Apenas me lembro de olhar para seu rosto em desespero e voltar os olhos à estrada. Foi quando encontrei um obstáculo. Esse sim era imóvel, aquele carro branco não desviaria, estava fugindo contra a regra. Era apenas esperar pelo embate, pelo baque. Bateríamos.

domingo, 5 de maio de 2013

À sangue frio (parte III)




Sabe aquelas cenas de pancadaria generalizada que rolam enquanto toca uma música clássica no fundo? Essa era a situação, algo parecido com a Abertura 1812 de Tchaikovsky. Digno de filme, onde socos são trocados, balas voam por todo o lugar e aquela música, é o oposto do momento. Estava acontecendo ali, estava parecendo um filme, era a violência na sua forma mais bruta.
Começou com a intimação sem direito a resposta. Me colocaram na viatura e iam trafegando até a delegacia. Os cinco quarteirões mais demorados da minha vida. Deu tempo de repensar o porque de ter agredido Jordana, como as coisas seriam dali pra frente e em como o meu comportamento sempre esteve condicionado para esse tipo de fim. Não, não me arrependo em nada, acho que o ser humano de vez em quando precisa desse tipo de catarse, sabe? Ao menos que seja a possibilidade de jogar tudo pra cima e limpar a alma, as impurezas e sentimentos ruins. Existem pessoas que dizem que precisamos ser ruins às vezes para ver o quão bom somos. Eu acredito nisso. Inclusive, acredito que sou uma prova viva de tal teoria. Não é necessariamente ter que ser, ou ser por natureza, a questão principal é que a realidade nos molda e joga contra a grade. É a nossa forma de revide. Liberar os demônios é necessário, eventualmente porque vivemos em um cotidiano fodido. Ou você bate, ou você apanha.
Entre todos esses dilemas, só me passava pela cabeça de que eu não precisava daquilo tudo. Eu não preciso respeitar tais leis, eu não vivo por elas, muito menos dentro delas. Uma coisa que eu nunca consegui, foi aguentar o fato de algo ou alguém me controlar. Isso me tirava do sério. Eu não sei aceitar as armadilhas do acaso, sempre fui assim: solitário e renegado, sem leis pra cumprir, sem amarras para me prender, nunca fui refém de nada, nem dos meus sentimentos, nem das minhas palavras. Naquele caso, eu era dos meus atos. Acho que fracassei em tentar viver minha vida toda em um piloto automático, muito mais em tentar deixar tais marcas do passado escondidas. Essas cicatrizes eram bem visíveis, eu era um anti-herói, e nada melhor do que uma surra nos porcos para provar a minha verdadeira natureza.
O dia não tinha começado bem e nem iria terminar assim. Não teria como, afinal, ao final da quinta quadra eu saquei a arma, acertando o condutor. Sim, eu sei, foi uma ideia idiota. O carro perdeu o controle, sem falar que o outro tira se virou e veio me golpear. Burro, poderia ter usado sua arma, embora em seguida ele tenha se lembrado dela. O vidro que nos separava já tinha se tornado em estilhaços que estavam no chão do veículo. Trocamos socos, num combate de igual para igual. Eu podia ver o seu medo, o seu despreparo. Provavelmente nunca tinha presenciado uma experiência de tal risco, e eu usaria essa fraqueza a meu favor. Eu faria dela a minha arma. Num impulso, ele simplesmente pulou para o banco de trás como se fosse um leão em busca da sua refeição. Naquele momento éramos animais dentro de um carro desgovernado. Poderíamos estar sendo vistos por outras pessoas, a viatura poderia estar caindo em um barranco ou indo para a direção oposta, cruzando a linha que separa as faixas, mas nada mais importava. Era o seu medo contra a minha ira, os seus 1,89 cm contra os meus 1,85, a sua inexperiência contra o meu instinto assassino. Entre golpes e socos, pontapés e cotovelos, estávamos ali, armados. Esperando o golpe final. Ele sabia que era uma luta desigual, e quando percebeu isso resolveu apelar para o seu trunfo. Não houve tempo para pensar. Aqueles segundos que nos separavam. Foi suficiente apenas para trocarmos um olhar que exibia a nossa vontade de viver, a luta pela sobrevivência, pela supremacia. Eu nasci para matar, eu fui a esse mundo com esse objetivo, aquilo seria mais do que comum, ao contrário do policial, aquele paladino da justiça que ia a contramão do que sou. Eu iria mata-lo, eu acabaria com sua vida, honrando o que meu pai sempre disse. A sangue-frio. Filhos e esposa chorariam, suas expectativas e sonhos morreriam com ele, sua tão sonhada aposentadoria em uma praia nativa ficaria para outra vida. Sacamos as armas ao mesmo tempo como em um velho faroeste onde os cowboys se enfrentam, em que os momentos de tensão contrastam com o vento calmo e o chão árido, com areia. Seu tiro acertou meu estômago, o meu soco o fez desabar, e quando segurei sua cabeça entre minhas pernas apontei para a sua cabeça. Em cheio. Sangue para todo lado. Estava no baco, nas minhas roupas, na minha barba, em meu rosto. Joguei o corpo para o lado. Aquele projétil deveria ter no máximo 1, 2 kgs, mas pesava uma tonelada. Naquele estado, debilitado, foram precisos minutos até arranjar forças e sair dali.
O dia de fúria estava longe de terminar. Atirei o corpo para fora e me sentei no lugar do condutor. Coloquei o cinto e com uma mão segurava o volante e a outra pressionava o local atingido. Era preciso chegar em casa, explicar para Mariana o que aconteceu e sair, para o mais longe possível. Ela deveria estar desenhando, fazia desenho industrial. Provavelmente me veria e entraria em pânico. Odiava brigas e sangue. Seria horrível enxergar seu medo e provocar nela aquele alvoroço todo, mas era necessário. O pior seria ter que partir. Com ou sem ela. Os tiras viriam. Em maior número. Sedentos, em uma jornada interminável. Era questão de justiça para eles, e não hesitariam em fazer com as próprias mãos, ou com suas balas.
Cambaleando, arrastando as pernas, juntando todas as forças para chegar em casa. Aqueles degraus pareciam enormes muralhas a serem percorridas. Eu iria chegar, pensava. Minha visão turva me contradizia. Balbuciei algumas palavras, que deviam ser o nome de Mariana. Desmaiei. Não sei por quanto tempo, mas fui acordado com seus gritos histéricos. Havia perdido muito sangue, mas mais ainda seria derramado ao entardecer. O momento de partida havia chegado. Eu seria refém daquele crime, perturbado em meus sonhos pelos olhos sem vida daquele vigilante, da surra em Jordana, do descontentamento dos meus pais ao saber que era procurado pela polícia. Penso na minha namorada, que desgosto se envolver com um assassino, mas ela poderia partir. Seria apenas eu contra o mundo. Seria, se ela não optasse por estar ao meu lado. Seríamos reféns, dos nossos erros, de nós mesmos.