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Projeto de escritor. To sempre de malas prontas pra lugar nenhum por que até hoje não achei casa alguma dentro de mim. (Pra saber mais, clique ali em Quem eu sou, à direita)

domingo, 12 de maio de 2013

À sangue frio IV



O vidro embaçava com a respiração de Mari, era o seu temor à mostra. Não poderia negar que era uma situação desconfortável, mas não chegava a ser medo, apesar da ideia de passar o resto da minha vida na cadeia não agradasse em nada. Andávamos em velocidade baixa, com os olhos bem abertos e atentos como os de um gavião, procurando qualquer vestígio de policiais, que naquele momento deviam estar adentrando nosso pequeno apartamento, revistando gavetas, procurando provas, detalhes que podiam dizer para onde iríamos. Trocamos poucas palavras, aquele pavor permanecia no ar como uma nuvem densa e cinzenta. Procurávamos ser discretos, mesmo assim, sabia que em algum momento teria que parar – eu ainda sangrava muito -, o problema seria onde ficaríamos. Nenhum lugar era seguro. Provavelmente teríamos que abastecer, ou seja, era a hora de aproveitar para pegar alguns mantimentos. Tudo isso teria que ser rápido, estaríamos nas TV’s, nas estações de rádio e em tudo mais que possa se imaginar. Além do mais, ninguém deixaria de notar um cara branco de 1,85 sangrando.
Desbravar aquelas ruas desertas e inóspitas era um desafio. Qualquer movimento me deixava tenso. Meus olhos fixos no semáforo que teimava em não acender a luz verde. O vermelho predominou por instantes que pareciam décadas. O mesmo vermelho do sangue derramado que originou tudo isso. O mesmo vermelho que saía do buraco em que a bala entrou. O vermelho de morte prevalecia. A respiração rápida de Mariana, o suor escorrendo por minha testa, o silêncio mortal, como se nossas palavras fossem armas. Tudo o que eu queria era desaparecer dali, mas a sinaleira teimava em demorar. Foda-se, arranquei cantando pneu, lembrando a época em que pegava o carro do meu pai escondido. Involuntariamente fui aumentando a velocidade, quando me dei conta, tinha passado dos 100 kms/h. Merda, era provável que  tivesse passado por algum pardal nesse período. Mariana deveria ter me avisado, mas ela não estava com o pensamento ali. Não poderia culpa-la, quem mais tomaria a tola decisão de estar ao meu lado a não ser ela? Em seus planos, provavelmente as cordilheiras da Patagônia eram o lugar perfeito para se refugiar. Eu concordava com ela, o problema seria chegar até lá. A neve tocando nossos rostos, seus cabelos morenos, uma cabana no meio da natureza e nada mais. Fiz um afago em sua perna trêmula, ela respondeu com um sorriso tímido. Em seu olho havia lágrimas, esperando o mínimo movimento para brotar. O rímel borrado, a orelha sem brincos e o cabelo despenteado. Sorri de volta, era o mínimo que podia fazer. Ela nunca pensou que se envolveria com um babaca assim. Provavelmente seu pensamento era criar uma família e cuidar do lar, eu estava providenciando emoções que ela nunca esboçou pensar. Um tiroteio, agressões, sangue, deixaríamos tudo isso para trás.
O carro aguentaria a viagem, ainda tínhamos combustível o bastante. A patrulha chegaria em alguns minutos, os policiais tomaria a cidade e suas saídas em pouco tempo. Eu não queria dizer nada para Mari, mas morreríamos ali mesmo. Morreríamos sem nem chegar perto da linha de chegada. Gostaria de dizer algumas coisas para ela, garanto que ela também gostaria de fazer o mesmo. Queria poder dizer que desde a primeira vez que a encontrei, nunca mais reparei em outra pessoa. Eu devia ser a maior decepção de sua vida, mas ela não sabe o quão duro eu dei para chegar a esse nível, o quanto eu batalhei para me tornar um babaca de primeira, um mau agouro na vida dos outros, símbolo de azar e fracasso por onde eu passo, a ovelha negra da minha família e de qualquer grupo que eu fiz parte. Ela era paciente e eu amava isso nela. Nunca mais iria vê-la fazer coisas que me encantam, como o simples fato dela ajeitar a mesa para as refeições, ou a forma com que ela ajeitava o cabelo. Isso me fazia sorrir, e lá estava eu sorrindo em uma situação de desespero descomunal, catatônico. Eu ali olhando para nossas alianças e me relembrando de uma frase do seu escritor favorito. Como era mesmo? “Formalizar o namoro é trocar um medo por outro. Antes tinha o medo de que ele não estivesse apaixonado, agora tem o medo de ser abandonada. A insegurança é eterna, quem tem certeza, não ama mais”. Nisso, ela me olha com cara de espanto, talvez nojo pelo seu sorriso despojado. Essa garota nunca me entendeu.
- Você é louco sabia? – disse ela, em um surto de raiva. – Vamos morrer aqui e tu sorri? Deus, como você é babaca.
- Meu bem – eu tentei argumentar -, você esperava algum final diferente desse?
            Ao acabar a frase pude ver pelo retrovisor as luzes azul e vermelhas preenchendo o fundo. Era o início da tão esperada caçada. Eles não desistiriam, como cães que farejam drogas, como lobos que procuram suas presas na neve, como os leões nos safaris africanos.
Fui acelerando ainda mais. Os meus batimentos cardíacos acompanhavam a subida de velocidade, assim como o choro quase compulsivo de minha namorada. O fundo estava sendo pintado por cores azuis e vermelhas, das luzes de viaturas que chegavam cada vez mais próximos do carro. Nada mais importaria daquele momento em diante. Era uma questão de tempo para ruas serem fechadas, barreiras colocadas e tiros serem disparados. Tudo é uma questão de tempo, tudo passa muito devagar, embora os instantes deslizem vagarosamente como uma Aranha desliza da sua teia, sem pressa alguma para saborear a presa, como os ritos antigos, em seitas onde uns devoram os outros. Seria assim, só que os tempos eram outros, assim como as armas se aperfeiçoaram. A única coisa que nunca mudou foi o fato da humanidade tentar acabar com o seu próximo. Das cavernas, com pedras e paus até os edifícios altos e as bombas atômicas, o instinto humano de entrar em conflito com o seu semelhante. E aqueles homens, eles iriam me cozinhar vivo. Eles fariam de tudo e me perseguiriam até os confins da Terra para me achar.Respirei fundo e troquei de faixa. Estava agora na contra-mão, como um furacão, todos os carros se afastando ou procurando desviar daquele tornado cinza. Era um movimento preciso. Era necessário ir contra tudo aquilo ali, era necessário arriscar. As estatísticas diriam que existiam mais de 90% de chances de bater o carro ou perder o controle da direção. Naquele momento eu não estava mais pensando. Eu estava apenas dirigindo, indo contra a correnteza como um peixe na sua árdua subida até a cabeceira dos rios para reproduzir. Ao contrário dos peixes, eu não estava buscando a vida e sim a morte. Seria uma bela morte ali. Seria como eu via na TV aquelas perseguições entre bandidos e bonzinhos. Quando você chega à fase adulta da vida percebe que não há grande diferença entre um e outro, nem tudo é tão claro e a maioria das coisas é cinza nesse mundo preto e branco. Quando se vira adulto, se percebe tantas coisas que antes a olho nu não eram perceptíveis. Muitas coisas mudam, mas nem tudo fica irreconhecível. Diante de nós apenas algo permanece imutável: o medo da morte. Algo que estava ignorando até aquele momento quando fui despertado de meu transe pelos gritos histéricos de Mariana. Eu não conseguia entender bem quais eram os xingamentos e palavras ditas. Apenas me lembro de olhar para seu rosto em desespero e voltar os olhos à estrada. Foi quando encontrei um obstáculo. Esse sim era imóvel, aquele carro branco não desviaria, estava fugindo contra a regra. Era apenas esperar pelo embate, pelo baque. Bateríamos.

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