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Projeto de escritor. To sempre de malas prontas pra lugar nenhum por que até hoje não achei casa alguma dentro de mim. (Pra saber mais, clique ali em Quem eu sou, à direita)

domingo, 5 de maio de 2013

À sangue frio (parte III)




Sabe aquelas cenas de pancadaria generalizada que rolam enquanto toca uma música clássica no fundo? Essa era a situação, algo parecido com a Abertura 1812 de Tchaikovsky. Digno de filme, onde socos são trocados, balas voam por todo o lugar e aquela música, é o oposto do momento. Estava acontecendo ali, estava parecendo um filme, era a violência na sua forma mais bruta.
Começou com a intimação sem direito a resposta. Me colocaram na viatura e iam trafegando até a delegacia. Os cinco quarteirões mais demorados da minha vida. Deu tempo de repensar o porque de ter agredido Jordana, como as coisas seriam dali pra frente e em como o meu comportamento sempre esteve condicionado para esse tipo de fim. Não, não me arrependo em nada, acho que o ser humano de vez em quando precisa desse tipo de catarse, sabe? Ao menos que seja a possibilidade de jogar tudo pra cima e limpar a alma, as impurezas e sentimentos ruins. Existem pessoas que dizem que precisamos ser ruins às vezes para ver o quão bom somos. Eu acredito nisso. Inclusive, acredito que sou uma prova viva de tal teoria. Não é necessariamente ter que ser, ou ser por natureza, a questão principal é que a realidade nos molda e joga contra a grade. É a nossa forma de revide. Liberar os demônios é necessário, eventualmente porque vivemos em um cotidiano fodido. Ou você bate, ou você apanha.
Entre todos esses dilemas, só me passava pela cabeça de que eu não precisava daquilo tudo. Eu não preciso respeitar tais leis, eu não vivo por elas, muito menos dentro delas. Uma coisa que eu nunca consegui, foi aguentar o fato de algo ou alguém me controlar. Isso me tirava do sério. Eu não sei aceitar as armadilhas do acaso, sempre fui assim: solitário e renegado, sem leis pra cumprir, sem amarras para me prender, nunca fui refém de nada, nem dos meus sentimentos, nem das minhas palavras. Naquele caso, eu era dos meus atos. Acho que fracassei em tentar viver minha vida toda em um piloto automático, muito mais em tentar deixar tais marcas do passado escondidas. Essas cicatrizes eram bem visíveis, eu era um anti-herói, e nada melhor do que uma surra nos porcos para provar a minha verdadeira natureza.
O dia não tinha começado bem e nem iria terminar assim. Não teria como, afinal, ao final da quinta quadra eu saquei a arma, acertando o condutor. Sim, eu sei, foi uma ideia idiota. O carro perdeu o controle, sem falar que o outro tira se virou e veio me golpear. Burro, poderia ter usado sua arma, embora em seguida ele tenha se lembrado dela. O vidro que nos separava já tinha se tornado em estilhaços que estavam no chão do veículo. Trocamos socos, num combate de igual para igual. Eu podia ver o seu medo, o seu despreparo. Provavelmente nunca tinha presenciado uma experiência de tal risco, e eu usaria essa fraqueza a meu favor. Eu faria dela a minha arma. Num impulso, ele simplesmente pulou para o banco de trás como se fosse um leão em busca da sua refeição. Naquele momento éramos animais dentro de um carro desgovernado. Poderíamos estar sendo vistos por outras pessoas, a viatura poderia estar caindo em um barranco ou indo para a direção oposta, cruzando a linha que separa as faixas, mas nada mais importava. Era o seu medo contra a minha ira, os seus 1,89 cm contra os meus 1,85, a sua inexperiência contra o meu instinto assassino. Entre golpes e socos, pontapés e cotovelos, estávamos ali, armados. Esperando o golpe final. Ele sabia que era uma luta desigual, e quando percebeu isso resolveu apelar para o seu trunfo. Não houve tempo para pensar. Aqueles segundos que nos separavam. Foi suficiente apenas para trocarmos um olhar que exibia a nossa vontade de viver, a luta pela sobrevivência, pela supremacia. Eu nasci para matar, eu fui a esse mundo com esse objetivo, aquilo seria mais do que comum, ao contrário do policial, aquele paladino da justiça que ia a contramão do que sou. Eu iria mata-lo, eu acabaria com sua vida, honrando o que meu pai sempre disse. A sangue-frio. Filhos e esposa chorariam, suas expectativas e sonhos morreriam com ele, sua tão sonhada aposentadoria em uma praia nativa ficaria para outra vida. Sacamos as armas ao mesmo tempo como em um velho faroeste onde os cowboys se enfrentam, em que os momentos de tensão contrastam com o vento calmo e o chão árido, com areia. Seu tiro acertou meu estômago, o meu soco o fez desabar, e quando segurei sua cabeça entre minhas pernas apontei para a sua cabeça. Em cheio. Sangue para todo lado. Estava no baco, nas minhas roupas, na minha barba, em meu rosto. Joguei o corpo para o lado. Aquele projétil deveria ter no máximo 1, 2 kgs, mas pesava uma tonelada. Naquele estado, debilitado, foram precisos minutos até arranjar forças e sair dali.
O dia de fúria estava longe de terminar. Atirei o corpo para fora e me sentei no lugar do condutor. Coloquei o cinto e com uma mão segurava o volante e a outra pressionava o local atingido. Era preciso chegar em casa, explicar para Mariana o que aconteceu e sair, para o mais longe possível. Ela deveria estar desenhando, fazia desenho industrial. Provavelmente me veria e entraria em pânico. Odiava brigas e sangue. Seria horrível enxergar seu medo e provocar nela aquele alvoroço todo, mas era necessário. O pior seria ter que partir. Com ou sem ela. Os tiras viriam. Em maior número. Sedentos, em uma jornada interminável. Era questão de justiça para eles, e não hesitariam em fazer com as próprias mãos, ou com suas balas.
Cambaleando, arrastando as pernas, juntando todas as forças para chegar em casa. Aqueles degraus pareciam enormes muralhas a serem percorridas. Eu iria chegar, pensava. Minha visão turva me contradizia. Balbuciei algumas palavras, que deviam ser o nome de Mariana. Desmaiei. Não sei por quanto tempo, mas fui acordado com seus gritos histéricos. Havia perdido muito sangue, mas mais ainda seria derramado ao entardecer. O momento de partida havia chegado. Eu seria refém daquele crime, perturbado em meus sonhos pelos olhos sem vida daquele vigilante, da surra em Jordana, do descontentamento dos meus pais ao saber que era procurado pela polícia. Penso na minha namorada, que desgosto se envolver com um assassino, mas ela poderia partir. Seria apenas eu contra o mundo. Seria, se ela não optasse por estar ao meu lado. Seríamos reféns, dos nossos erros, de nós mesmos.

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