Seria
mais um dia normal não fosse o incidente da noite anterior. Tratei de agir
normalmente chegando atrasado como de costume me dirigindo a minha sala, sem
prestar muita atenção no que os outros estavam fazendo. Estávamos entre nove
pessoas, era um jornal de pequena circulação situado no meio do centro daquela
cidade interiorana. Dava uma boa grana, o bastante para pagar o aluguel e
algumas contas, e permitia algumas pequenas regalias como jantar fora às vezes.
Mas eu nunca fui bom em trabalhar. Talvez o certo seja: eu nunca fui bom em me
situar a pequenos lugares e permanecer por muito tempo. Já conhecia as salas
até mesmo em seus mínimos detalhes. Arquivos enormes cinzas, pastas e mais
pastas, jornais para todos os lados, pessoas caminhando com pressa e o telefone
tocando. Alguns dias aquilo era um caos, mesmo para uma cidade do interior.
Joel
nem me olhou. Estava ali pegando um copo de água e eu com o meu cigarro. Eles
odeiam que eu fume, existem regras para não fumar na redação, foda-se aquilo.
Eu achei que ele começaria algum discurso parecido com aqueles que meu pai
sempre faz sobre responsabilidades e consequências. Eu faria o que sempre faço
quando ele discursa sobre tais coisas: acenderia meu cigarro e não daria a
mínima. Fingiria interesse, diria que pensaria em algumas mudanças de
comportamento e não faria nada de diferente. Mas existia algo diferente no
ambiente, mesmo que estivéssemos em um lugar tão habitual, as palavras não
sairiam como de costume, não seriam as mesmas como de costume e muito menos as
nossas reações seriam iguais.
-
Você é brilhante, mas é um babaca. Não posso continuar com você na redação.
Eu
fiquei tocado com aquelas palavras. Finalmente um pouco de reconhecimento! É pedir
demais? Nem daria relevância para o anúncio de que havia sido despedido. Eu
finalmente tinha conseguido, um pouco de prestígio. Mesmo que tivesse saído da
forma com que aconteceu, eu havia chegado lá. Pelo menos uma pessoa nesse mundo
sabia que eu era brilhante. Uma pessoa admitia o meu brilhantismo, o gênio que
muitos não viam, não eram todos cegos e alguém podia ver a forma radiante como
eu colocava as palavras. Não é ótimo ter o ego massageado? Até parece que nós
realmente acreditamos no que os outros dizem para a gente. Até parece que se
importam conosco. Não sei o que eu faria o resto do dia desempregado, mas isso
já me daria ideias para começar aquele livro que eu tanto queria. Porventura eu
falasse sobre esse episódio.
Olhei
pra ele e apaguei o cigarro. Eu não sabia ao certo o que falar, muito menos o
que argumentaria sobre a surra que dei em Jordana. O que eu diria? “Ela mereceu”?
Seria meio infantil. Ele provavelmente já sabia ou saberia em breve quando
visse o olho roxo dela, os machucados na sua face ou a forma debilitada como
viria ao trabalho.
-
Apenas pegue suas coisas.
E
me deu um abraço. Foi uma forma de dizer que se importava comigo, eu acredito.
Não havia tempo para uma reação. Apenas fiz o que ele me pediu, enquanto todos
me olhavam, esperando, torcendo para que suas expectativas fossem cumpridas.
Não teriam que aturar aquele charlatão metido a intelectual, arrogante e
entedido de todas as coisas que remetiam a dar uma opinião. Esvaziava a gaveta,
colocando os livros de Poe em uma caixa, as folha anotadas, as agências
esquecidas cheias de listas que nunca foram cumpridas dentro e a minha arma. Eu
tinha um mini pistola, 22, presente de um vô que nunca foi presente, mas uma
lembrança constante dos tempos em que íamos acampar e fazíamos de nossas
refeições animais vivos que caçávamos na floresta. Foi uma herança inútil. Era
uma herança inútil, até aquele momento. Meus passos pesados eram a prova de
que, mesmo odiando aquele lugar, eu não queria ir embora. Talvez não dá forma
como estava sendo, talvez pelo apreço familiar. Constantemente temos a
necessidade involuntária de romantizar pessoas, lugares, coisas, objetos, na
intenção de ver alguma importância real neles. Acendia um último cigarro em ato
de rebeldia e fui descendo as escadas. Foi quando encontrei Jordana. Seu
sorriso parecia uma amostra de que tramava algo, seu sorriso era confiante,
inóspito, ela tinha algo preparado. Já dizia Bukowski, “uma fêmea raramente se
afasta de uma vítima sem ter outra à mão”, e nesse caso, eu era a vítima. Seus dentes tão a mostra assim eram um indício de que planejara
uma forma de dar o troco. Aprendi que as pessoas só sorriem dessa forma quando
transaram na noite passada ou estão esperando confirmar algo. Ao sair do prédio
confirmei isso.
Dois
policiais me esperavam, e logo me trataram de colocar na viatura. Qualquer
falatório meu seria inútil, então apenas travei e engoli qualquer palavra que
pensei em dizer. Eles apenas não sabiam que eu tinha uma arma e nenhum receio
em usá-la. Meio irracional, meio suicida, mas esse era eu, e eu não dormiria
uma noite por um motivo como aquele. Não hoje, não aquela semana, não por
aquela causa.
Um comentário:
Como de costume, muito bom.
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