Ao que ainda me recordo meu nome é Carlos. Ando meio zonzo pelos choques que me deram. Estou surdo da
orelha esquerda, embora ouça muito bem os murmúrios de esperança do povo e da
tentativa silenciosa de cala-lo. Tenho 27 anos bem vividos, dentre eles, 5 pelo
Aliança Nacional Libertadora. Meus cabelos crespos hoje estão cortados. Devem
estar no chão de qualquer DOI-Codi. As marcas pelo meu corpo são eternas, assim como
a chama que floresce a cada pancada. Murros e chutes são comuns nesse
nordestino. Sou cabra macho, resisti a quatro interrogatórios daqueles
assassinos. Traidores da pátria, estão enganando a si mesmos, defendendo aqueles que ao virar as costas irão fuzila-lo.
Não sei bem o que houve com Adrian,
Lauro ou Helvécio. Não tenho nenhum resquício de notícias de minha menina,
Marjorie. Ela me entregou, assim como tantos outros companheiros que se
renderam. Não os lamento, cada um tem seu limite. A luta armada continua por
trás dessas grades. Os lírios de nossos campos não tem o mesmo brilho. As
flores de nosso querido país são regadas a ódio e sangue. As cores de nossa
bandeira estão se esvaindo, assim como as minhas esperanças de sobreviver
aqui neste lugar. Se não fosse minha orientação cristã, teria já praticado o
suicídio. É o que mais me passa pela cabeça, porém não tenho nenhum instrumento
a não ser essa arma apontada a minha cabeça.
Estou em um cubículo escuro. Me
acostumei a lugares pequenos e fechados desde os tempos de Grêmios Estudantis.
Não me é concedido o cigarro. O lugar é fétido, cheira a azedume com que sou
tratado. Há uma doce angústia que paira no ar neste fosso. Fezes estão por
todos os lados como se estivesse em uma gaiola. Os excrementos me fazem
companhia, e para os militares, sou um parente próximo deles para ficar tão
perto assim. Converso com minhas cicatrizes, elas me dizem para resistir. Os
hematomas dão cor ao corpo branco. O sangue se concentra em minha boca, nos
ferimentos. São enormes coágulos e alguns edemas nas costas e braços oriundos
das agressões que sofri. Meus pensamentos procuram me confortar, dar uma
palavra amiga. Minha cabeça dói e quase me impede de pensar, mas nem as dores
nem a reclusão me evitam de acreditar que este é um pesadelo ao qual um dia vou
acordar.
Tento ser otimista. Marighella
estaria orgulhoso de mim. Estaria, se não estivesse morto. Nosso mais
nobre companheiro foi pego em meio à batalha. Tiros o tiraram da luta, embora
nossos irmãos ainda lutem por ele e pelo nosso Brasil. Liberdade a qualquer
custo como o próprio Carlos dizia. Não tenho seus livros aqui, minha rotina são
os espancamentos e a horrível alimentação. Mijam no arroz e misturam com carne
de terceira. Isso quando tem carne. Não me lembro quantas refeições fiz até
agora, mas sinto meu estômago roncar cada vez menos. Ele está se acostumando a
se alimentar da angústia e da tristeza latente em meu olhar. Estes traumas pra sempre irão me aprisionar.
A ditadura conseguiu enclausurar o principal: o nosso consciente, mas mais do
que isso, o consciente coletivo.
Estou tentando me agarrar ao que
posso, embora no momento minhas contas estejam atrasando e toda minha poupança
tenha sido revirada. Como foi meu apartamento quando me encontraram. Tudo
quebrado, livros revirados, móveis destruídos. Felizes são os exilados. Felizes
são os ignorantes, os inertes ao que está acontecendo. Felizes são as crianças
e inocentes que não veem o ocorrido. Perdão e misericórdia. Não para mim, mas
para as mulheres estupradas e aos futuros filhos da ditadura. Misericórdia aos
que se entregaram e aqueles que fingem não ver. Perdão aos amaldiçoados sem
alma que ao defender o país dos “terroristas”, estão trazendo apenas o regresso
de volta. Orwell previu isso, mas não previu o amanhã. Não sei o que será de
mim amanhã. Nem mesmo o que acontecerá com minha pátria verde e amarela. Tento
me confortar com a poesia de Chico. “Amanhã vai ser outro dia / Amanhã vai ser
outro dia”. Eu espero que Chico esteja certo.
“ … queira-te eu tanto, e de tal modo em suma, que não exista força humana alguma que esta paixão embriagadora dome. E que eu por ti, se torturado for, possa feliz, indiferente à dor, morrer sorrindo a murmurar teu nome”
— | LIBERDADE, Carlos Marighella |
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